No meu texto anterior, disponível aqui, destaco que Orígenes é relativamente pouco conhecido no Ocidente no Brasil. Uma das razões para isso reside na escassez de traduções de suas obras para o português, sendo a Editora Paulus, por meio da notável coleção Patrística, a principal responsável por apresentar quatro de suas obras: "Tratados sobre os Princípios", "Homilias e Comentário ao Cântico dos Cânticos", "Homilias sobre o Evangelho de São Lucas" e uma das mais importantes obras apologéticas do cristianismo, "Contra Celso".
A falta de material disponível sobre Orígenes abre espaço para que imprecisões e equívocos sobre a sua vida e teologia se disseminem, contribuindo para que a simples menção do seu nome seja frequentemente acompanhada por vários preconceitos.
Nascido por volta de 185, no Egito, durante o reinado de Cômodo, Orígenes provém de uma família rica e cristã. Seu nome, significando "Nascido de Hórus" em grego, é uma evocação da fase inicial da história da Igreja, anterior à popularização dos nomes cristãos, conforme destaca McGukin. Seu pai, Leonidas, destacava-se como gramático e professor de literatura de alta classe, provavelmente assegurando uma vida próspera por meio desse ofício. Vale ressaltar que Alexandria figurava como um dos principais centros de estudos da época.
Seu pai desempenhou o papel inaugural como seu educador, focando o currículo na "egkýklios paideía" e, acima de tudo, nas Sagradas Escrituras. Essa formação inicial delineou os alicerces do pensamento e do conhecimento que moldariam a trajetória notável do Adamantius no contexto da teologia cristã.
É com Orígenes que começa a tradição das Hagiografias, onde podemos ver uma dessas histórias relatadas por Eusébio, na sua história eclesiástica. Ele nos conta que seu pai dava graças a Deus pela vida do seu filho, que ainda criança, lançava perguntas a respeito do Texto Sagrado, deixando-o sem saber o que responder. E que toda noite beijava o peito do seu filho enquanto dormia, sabendo que seu filho era um vaso cheio do Espírito Santo.
Por volta do ano 202, aos 17 anos, Orígenes testemunha a prisão de seu pai. Na ocasião, ele expressou o desejo de acompanhá-lo, contudo, como relata Eusébio de Cesareia:
"Pouco faltou para que perdesse a vida, mas a divina e celeste providência, visando o bem da maioria dos fiéis, opôs obstáculos ao seu fervor, por intermédio de sua mãe."
Sua mãe, percebendo que ele pretendia unir-se ao seu pai, achou, por bem, esconder todas as suas roupas, impedindo assim que ele saísse de casa. Posteriormente, Orígenes passa a escrever cartas ao seu pai, encorajando-o a permanecer firme na fé em Cristo, independentemente do que pudesse acontecer com eles. Após algum tempo, Leonidas é martirizado. Por ser cidadão romano, foi executado por decapitação, uma vez que essa era a única forma pela qual um cidadão romano poderia ser morto.
Após esse episódio, a vida do jovem teólogo toma um rumo desafiador. Com seu pai, martirizado por sua fé cristã, e a confiscação dos bens da família pelo estado romano, Orígenes se encontra na posição de provedor de sua família, que incluía sua mãe e seis irmãos. Por algum tempo, ele prossegue nos estudos com a ajuda de uma rica senhora. No entanto, posteriormente, Orígenes decide não aceitar mais essa assistência, pois ela também sustentava um herege, e Orígenes não aceitava participar de reuniões de orações e sacramentos com ele. Após esse período, ele funda sua própria escola, pois estava apto para o ensino, garantindo assim seu sustento e o de sua família.
Tempos depois, o bispo Demétrio solicitou que Orígenes assumisse a função de catequista na igreja. Isso demonstra não apenas a falta de pessoas qualificadas para a catequização, mas também destaca a grandeza do intelecto do jovem. A escassez de cristãos capacitados para essa função pode ter ocorrido devido à fuga de muitos deles da cidade durante a perseguição de Sétimo Severo. Eusébio, em sua História, sugere que entre esses fugitivos estava possivelmente Clemente de Alexandria, que, segundo o relato de Eusébio, também foi mestre de Orígenes. No entanto, essa afirmação não é amplamente aceita nos círculos acadêmicos.
A partir desse momento, a vida de Orígenes tomou um rumo mais dedicado ao serviço eclesiástico. Ele deixou de lado o ensino secular e se entregou totalmente à instrução na igreja. Sua vida assumiu um caráter mais ascético, abraçando a pobreza, celibato e jejum. Ele chegou até a vender sua biblioteca de autores pagãos a um preço muito baixo.
A fama ascética de Orígenes o posicionou como o Pai fundador do movimento monástico, que ganharia força nos séculos seguintes. Sua dedicação à vida cristã e sua influência nos círculos religiosos começavam a se consolidar, preparando o terreno para seu papel significativo na história da Igreja.
Um episódio frequentemente lembrado ao falar da juventude de Orígenes é sua suposta autocastração. Particularmente, não estou entre aqueles que defendem essa tese. Como grande exegeta e alguém que sempre visou interpretar o texto sagrado de maneira espiritual, acreditar que ele tenha levado “ao pé da letra” São Mateus C. 19:12, em minha opinião, parece improvável. No entanto, deixarei para abordar esse assunto mais adiante.
Com o passar do tempo, Orígenes vai ganhando fama de grande mestre. Podemos considerá-lo o primeiro teólogo mundialmente conhecido que a igreja produziu, sendo chamado para resolver disputas teológicas em diversas regiões. Um fato notável é que Orígenes buscava convencer o herege de forma filosófica/teológica, mas de maneira serena, levando aquele que estava no erro a compreender seu posicionamento e retornar à fé da igreja, como ocorreu no debate com Heracleides.
Enquanto estava vivo, Orígenes foi reconhecido como um bastião da ortodoxia, tornando-se responsável por resolver disputas teológicas das mais variadas. No entanto, após sua morte, parece que esses feitos foram esquecidos. (EHRMAN; FEE; HOLMES, 1992)
A partir de suas viagens, ele conhece vários bispos, incluindo Teotecno, Bispo de Cesareia, e Alexandre, Bispo de Jerusalém. Em Cesareia, Orígenes é convidado para pregar na igreja, enfurecendo seu bispo, Demétrio, assim que fica sabendo. A pregação de leigos não era um costume, mas o bispo de Cesareia enviou uma carta com várias argumentações sobre a possibilidade de leigos pregarem. Por um tempo, Demétrio teve seu furor acalmado, mas depois que Orígenes aceitou ser ordenado ao ministério pelos bispos de Cesareia e Jerusalém, sua raiva contra Orígenes se torna implacável.
A compreensão das razões que levaram Orígenes a aceitar o ministério permanece um tanto intrigante. Nesse período, testemunhamos algumas ordenações forçadas, como foi o caso de Pauliniano pelas mãos de Epifânio de Salamina. Cruzel especula que talvez Orígenes tenha cedido à pressão dos bispos e de outros que o percebiam como um homem de fé, acreditando que ele deveria desempenhar o papel de padre na igreja.
Após Orígenes se estabelecer em Cesareia, é lá que a maioria de seus escritos é produzida. Sua grandeza intelectual, criatividade e vida devotada a Cristo o elevam ao status de um dos maiores escritores da igreja. Com a assistência de S. Gregorio Traumaturgo, convertido à fé cristã por Orígenes, são fornecidos os meios necessários para que ele se envolva em uma atividade de escrita quase sobre-humana. O número de suas obras varia nas estimativas, sendo algumas contadas como mais de 6 mil, enquanto outras afirmam serem 2 mil. O fato é que foram tantas obras que seria impossível lê-las e estudá-las em uma única vida.
A vida de Orígenes teve um desfecho triste, porém grandioso. Por volta do ano 250, Orígenes é preso, mas não é morto, uma vez que o martírio não era algo desejado pelo império; buscavam que ele renunciasse publicamente à fé em Cristo, mas isso não ocorre. Ele suporta anos de tortura. Após a morte de Décio, Orígenes é solto, mas já não consegue andar nem escrever, vivendo bastante debilitado. Falece antes dos setenta anos, um grande homem que dedicou toda a sua vida a Cristo. Morre como um confessor; se tivesse perecido como um mártir, talvez sua reputação não tivesse sido tão manchada ao longo dos séculos.
Esboçar uma síntese da biografia de Orígenes e de suas obras é uma tarefa desafiadora. Eusébio, que dedicou considerável espaço na história eclesiástica, reconhece que poderia ter oferecido ainda mais detalhes. Meu propósito é proporcionar uma visão sucinta da grandiosidade desse homem, cuja influência foi fundamental para a fé ortodoxa. Ao abordar sua vida e teologia, tentarei apresentar uma perspectiva abrangente. Detalhes como sua alegada autocastração, suas jornadas, sua filiação ao platonismo e demais pensadores serão explorados em futuros textos dedicados a cada aspecto.
Quanto a ser um "Originiano", ainda é muito cedo para afirmar, mas o impacto de estudar sua vida e obra tem sido significativo.
EHRMAN, B. D.; FEE, G. D.; HOLMES, M. W. The text of the fourth Gospel in the writings of Origen. Atlanta, Ga: Scholars Press, 1992.
CROUZEL, H. Origen. Edinburgh: T. & T. Clark, 1999.
MCGUCKIN, J. A. (ED.). The Westminster handbook to Origen. 1. ed. Louisville, Ky: Westminster John Knox Press, 2004.
CESARÉIA, E. DE. Patrística - História eclesiástica - Vol. 15. 1a ed. PAULUS Editora, 2014.
MCGUCKIN, J. A. Origen of Alexandria: Master Theologian of the Early Church. Lanham: Fortress Academic, 2022.
ROUSSELLE, A. LA PERSÉCUTION DES CHRÉTIENS A ALEXANDRIE AU III e SIÈCLE. Revue historique de droit français et étranger (1922-), Quatrième série, v. 52, n. 2, p. 222–251, 1974.
HAYKIN, M. Redescobrindo os pais da igreja. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2012.


